sábado, 28 de abril de 2012

" Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores"



UMA HISTÓRIA DE OUSADIA

"Para entender o significado e a importância da música mais popular de autoria de Geraldo Vandré, é preciso saber que a mesma se impôs num cenário musical e cultural dos mais delicados, principalmente se considerarmos que em 1968 nosso país vivia um momento político dos mais difíceis.

Usando seu talento poético e musical, Vandré ousou driblar a censura implacável que os militares reservavam a toda manifestação cultural que fosse de encontro do regime estabelecido, para lançar no ar uma mensagem musical, alertado o povo brasileiro para a situação reinante, e principalmente para a necessidade desse povo tomar para si as rédeas da história. Só assim seria possível tirar o país das trevas social e política em que o mesmo fora colocado, por um regime militar reconhecidamente excludente.

“PARA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DAS FLORES” foi apresentada ao público no Festival da Canção. Premiada pelo júri com a segunda colocação, a canção voltou a ser interpretada de novo nesse evento sob vaias e protesto, de um Maracananzinho superlotado, e que não conseguia compreender os votos dos julgadores.
Mas a canção de Vandré era forte o suficiente, e não apenas resistiu à incompreensão dos jurados e da ditadura militar – que proibiu sua execução por anos -, mas acabou transformando-se no hino oficial de toda uma geração politicamente consciente e devidamente engajada em um dos movimentos sociais. E o segredo da eterna emotividade em ouvir “PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DAS FLORES”, talvez possa ser compreendido com uma leitura mais cuidadosa da música em questão.

Na primeira estrofe, Vandré simboliza a igualdade entre os homens através de uma melodia cantada em uníssono por todos aqueles que socialmente pertencem ao grupo dos excluídos. Nas entrelinhas o autor parece fazer um alerta sobre a necessidade da comunhão dos explorados, para juntos entoarem afinados a melodia que transforma e que liberta.

Na segunda estrofe, o autor faz um alerta veemente sobre a necessidade de o homem construir sua própria história sem intermediários. Se o homem se encontra insatisfeito com o sistema em que vive e com sua condição de explorado, é preciso que ele tome para si e para os que como ele pensam, a tarefa de construção de uma sociedade onde ele possa se sentir humanamente satisfeito. O homem que sabe de sua condição de explorado não deve confiar sua libertação a terceiros. Ele deve ter a consciência que o fim do seu estado de opressão passa por sua ação participativa, propondo e sendo sujeito nos momentos em que se tomam e em que se põem em prática decisões libertadoras.

No terceiro parágrafo, o autor nos remete a uma realidade social das mais injustas em nosso país: a questão da má distribuição daquilo que se produz no campo. Como resultado disso, enquanto meia dúzia de grandes proprietários acumula fortunas exportando produtos colhidos em suas extensas áreas de terra, a maioria do povo passa fome, seja por falta de um pequeno pedaço de terra onde ele possa tirar seu sustento, seja pela falta de recursos para adquirir os produtos colocados à venda no mercado varejista, sempre com preços muito acima do valor real. Vandré completa seu pensamento nesse parágrafo abordando o problema das pessoas que vagueiam pelo país afora, sem qualquer perspectiva profissional ou de ascensão social. Apesar de tudo, esses seres preferem acomodar-se à situação em que vivem, e a maioria segue acreditando que um dia tudo possa ser resolvido de forma pacífica, através de um acordo entre explorados e exploradores.

No penúltimo parágrafo, o autor fala sobre o braço armado do sistema. São pessoas que exercem uma profissão tão alienada e brutalizada, que não conseguem de fato cumprir a função que a sociedade espera delas. Brutalizados e treinados para enxergar inimigos em todo e em todos, os “soldados da pátria” estão sempre prontos a matar e a morrer. Mesmo que nesses gestos não exista mesmo muito sentido, afinal, pode haver explicação para se entregar a vida por causas onde não há sentido?

Vandré encerra seu discurso musical falando sobre o amor que os sujeitos das transformações precisam dedicar à causa que resolveram abraçar. Segundo o autor, tais agentes das transformações necessitam, acima de tudo, acreditar na necessidade da libertação dos oprimidos. Eles têm ainda que conhecer a fundo a origem da opressão do seu povo, para, a partir daí, formular um projeto conseqüente, confiável e que realmente possa ser aplicado à causa libertadora.

E o autor encerra seu discurso como a afirmar que o projeto de uma nova sociedade, por não ser algo pronto nem acabado, precisa que seus autores e propositores sejam pacientes e humildes o suficiente para estar constantemente aprendendo a lição das necessidades do povo, enquanto ensina a esse povo uma nova lição: a lição libertadora."


Autoria: José Eduardo Bastos

domingo, 22 de abril de 2012

A Formação dos Estados Modernos Europeus.


O Estado, por sua vez, não é definido com precisão por nenhuma norma ou padrão. Por todo o mundo, os Estados nacionais surgiram em momentos históricos diferentes, aproveitando-se de situações peculiares e sofrendo influências múltiplas internas e/ou externas. Analogamente, suas funções se modificaram ao longo do processo histórico. De forma abrangente, podemos denominar o Estado como um organismo político-administrativo que, como Nação soberana ou divisão territorial, ocupa um território determinado, é dirigido por governo próprio e se constitui pessoa Jurídica de direito público internacionalmente conhecida.
             A organização dos Estados nacionais na modernidade foi motivada por diversos acontecimentos importantes que faziam parte do contexto histórico europeu, na transição do sistema feudal para uma sociedade de ordem burguesa. É certo que nem toda Europa participou igualmente dessas transformações.
             O atual Estado italiano, apesar de pioneiro no desenvolvimento cultural ligado às artes e letras, permaneceu fragmentado até o século XIX. Nos Estados que hoje integram a Alemanha, por sua vez, ocorreu pioneiramente um movimento reformista que rompeu a unidade religiosa européia, mas que não se propôs ou preferiu adiar a consolidação do Estado nacional.
             Um dos sentimentos dominantes entre os povos no século XIV foi o desejo de estreitar os laços da língua, para que pudessem exprimir, com as mesmas palavras, as mesmas maneiras de sentir e pensar. O Renascimento iniciado na Itália forneceu esse suporte lingüístico, que muito contribuiu para a evolução do Estado nacional. A hegemonia de uma língua nacional acabou com a fragmentação associada aos inúmeros dialetos regionais. Assim, através das pesquisas lingüísticas e filosóficas dos humanistas do Renascimento, foi possível a constituição dos diversos idiomas nacionais, responsáveis por um padrão unitário à administração, aos estatutos e à cultura de cada pais, dando-lhe unidade homogênea e identidade própria ou peculiar. Embora ainda estivessem distantes da sua forma ideal de organização política, a Itália e a Alemanha também almejavam por um idioma próprio.
             Se era tão importante uma língua nacional, não menos importante seria a possibilidade de uma Igreja Nacional capaz de se contrapor à universalidade da Igreja Católica. Isso tornou-se possível a partir da Reforma Protestante, responsável pelo surgimento de Igrejas cristãs dissidentes que reduziram a autoridade espiritual dos papas e assentaram um golpe decisivo nas suas pretensões de disputar aos reis o poder temporal. Manifestou-se desde o século XIV, no Ocidente, o anseio por uma espécie de nacionalismo eclesiástico, ou seja, o desejo de uma religião nacional, para que os príncipes pudessem dirigir, a seu modo, os cleros nacionais.
             A questão religiosa na Idade Moderna gerou polêmicas, e, em alguns casos, levou ao rompimento com o clero católico. Foi o que aconteceu na Inglaterra no século XVI com a Reforma de Henrique VII I. Em Portugal e na Espanha, porém, tornou-se possível o estabelecimento de um Estado de compromisso, no qual se uniram os interesses temporais e espirituais
             A idéia de Nação estava vinculada à necessidade de apoiar a soberania do príncipe, vital para a construção de um Estado forte e competitivo, pronto para justificar as decisões mais graves da política exterior. Tal concepção fez aumentar a necessidade de estabelecer fronteiras precisas entre um reino e seus vizinhos, pois o Estado deixava de ser um agregado de feudos para se tornar "nacional", algo com que todos se identificavam. Geralmente os limites eram fixados ao longo dos rios, mas também houve fronteiras determinadas por linhas imaginárias. As fronteiras marítimas, principalmente após as grandes navegações, tornaram-se uma questão de Estado, muitas vezes sofrendo a interferência do poder espiritual. Um exemplo é o Tratado de Tordesilhas (1494), que dividiu a América entre portugueses e espanhóis, sob os olhos atentos do papa Alexandre Vi.
             O Estado unificado representou a consonância entre o rei e a comunidade nacional, tornando-se a própria base para o pleno desenvolvimento socioeconômico. O termo comunidade nacional é usado aqui também no pior sentido, no sentido do preconceito: uma comunidade na qual o estrangeiro é visto com desconfiança ou abertamente hostilizado como indesejável. Por exemplo, no fim da Idade Média, artesãos holandeses sofreram perseguições na Inglaterra e os judeus da Alemanha foram vítimas de violentas manifestações de xenofobia, responsabilizados em algumas regiões pela difusão da Peste Negra.
             Judeus e estrangeiros não foram os únicos a conhecer a repressão. O interesse em conter as massas camponesas, que, estimuladas pelo desenvolvimento comercial, buscavam novas oportunidades de trabalho nas cidades, fazia com que burgueses e nobres se preocupassem em organizar novas estruturas políticas. A burguesia via num Estado nacional centralizado e forte a possibilidade de incentivar a economia mercantil, enquanto seus aliados da nobreza acreditavam que a nova ordem política poderia significar um aparelho mais forte de dominação, contra as rebeliões camponesas e outras manifestações "plebéias" de mudanças.
             Em resumo, para a sociedade européia ocidental do século XIV, a unidade nacional parecia ser a palavra de ordem. Exército nacional, moeda única, território demarcado, língua e cultura, administração única, enfim, um caldeirão de sentimentos nacionais borbulhava na Europa ocidental, anunciando a grave crise do sistema feudal que se tornaria irreversível no século seguinte.
             A exacerbação dessa crise favoreceu o surgi mento dos Estados modernos, governados por monarquias nacionais. Em alguns casos, estas assumiram um caráter absolutista. Foi o que
aconteceu, por exemplo, na França, em Portugal e na Espanha.
             Nos países ibéricos, o desenvolvimento da burguesia e das atividades econômicas mercantis e industriais favoreceu a implantação do regime absolutista, uma vez que os conflitos existentes entre os nobres e os comerciantes exigiram a instalação imediata de uma nova ordem política.
             Foi necessário, porém, que nenhum desses elementos se opusesse radicalmente ao poder de intermediação dos príncipes. Mercadores nas cidades e nobres nos campos de certa forma tiveram que estabelecer diferentes alianças com o monarca para a manutenção da ordem. O rei garantia a tranqüilidade política e social, arbitrava conflitos de interesses no seio das camadas privilegiadas, e com isso edificava sua superioridade.
             Os historiadores Christopher Hill e Renê Rémond analisam a monarquia inglesa como um caso peculiar, específico, devido ao modo pelo qual se organizou o poder político no país após o século XII, com a assinatura da Carta Magna (1215).
             Estatuto político tipicamente feudal, a Magna Carta não pretendia ser um documento popular, no sentido de garantir liberdades ao cidadão comum. Ela estabelecia os limites do poder real, fixando os direitos e deveres da monarquia e de seus vassalos da alta nobreza. Mas seu alcance acabou sendo estendido quando foi instituído o Parlamento na Inglaterra, no século XIII.
             O Parlamento era composto pela Câmara dos Lordes, que reunia nobres leigos e eclesiásticos, estes escolhidos pelo rei, e pela Câmara dos Comuns, na qual elementos da baixa nobreza (gentry) eram eleitos por voto censitário (voto vinculado às propriedades que possuía o eleitor). As duas Câmaras passaram a exercer funções legislativas, bem como a controlar a cobrança dos tributos do Estado.
             O modelo de Estado nacional que se desenvolveu na Inglaterra entre os séculos XIII e XVII permanece objeto de discussão. Diferentes correntes historiográficas apresentam a monarquia inglesa ora como absolutista ora como aristocrática autoritária. A discussão gira em torno da divisão dos poderes, uma vez que, para alguns historiadores, os poderes Executivo, Legislativo e judiciário não se concentravam nas mãos do soberano.
             Do outro lado do canal da Mancha, porém, não havia dúvidas. O Estado francês se constituía no modelo clássico para o estudo do absolutismo europeu. Segundo o historiador Marcos Antônio Lopes, "ao conjunto da Europa ocidental, a França desponta não somente como a maior e mais povoada, mas também como a mais solidamente centralizada nação européia". Tal estado de coisas estimularia as reflexões de alguns dos mais respeitados pensadores políticos da modernidade
             A manipulação do imaginário social, para a construção da imagem daquele que irá ocupar o poder, é particularmente importante. Na maioria das vezes, não basta mostrar apenas a verdade. Os responsáveis pela representação "gráfica" dos candidatos, ou seja, os marketeiros políticos tinham de convencer o eleitor.
             Em certa medida, funções semelhantes às dos marketeiros contemporâneos foram exercidas na modernidade pelos teóricos do absolutismo. Eles justificavam o poder dos reis baseados em teorias filosóficas que certamente refletiam o desejo de camadas sociais interessadas na manutenção da autoridade centralizada. Mas, na verdade, esses pensadores fizeram mais do que "vender" a imagem da realeza. Eles empreenderam uma profunda reflexão sobre o Estado e a política, procurando chegar a conclusões acerca do modelo ideal de Nação e de poder.
             O florentino Nicolau Maquiavel (14691527) introduziu dois conceitos importantes para o pensamento político moderno, Virtú e Fortuna. Virtude era para Maquiavel a capacidade de o governante escolher a melhor estratégia para a ação de seu governo, enquanto Fortuna remetia às contingências às quais os homens estão submetidos. Um bom governante seria aquele que, com sabedoria, soubesse combinar Virtude e Fortuna, sem priorizar uma ação em detrimento da outra. Para alcançar a plenitude na política, os reis teriam que ter autonomia, não sendo tutelados por nenhuma instituição, livres inclusive do poderio da Igreja Católica.
             Juntamente com Maquiavel, o inglês Thomas Hobbes (1588-1679) é um dos principais representantes da Teoria do Contrato Social. A partir da expressão "o homem é o lobo do homem" (homo homini lúpus), Hobbes justificou a necessidade de a sociedade civil ser organizada politicamente para sair do estado de natureza, que para ele era sinônimo de caos. O estado de natureza, segundo Hobbes, era uma situação em que os homens viviam em sociedade apenas por questões de sobrevivência, por necessidades vitais, não por se sentirem seres sociais. Hobbes sustentava que sem um governo forte e capacitado os homens não respeitariam os limites necessários para uma boa convivência social. O caos estaria sempre presente no cotidiano das pessoas.
             Sendo assim, a sociedade abdicaria de seus direitos em nome do rei, capaz de manter a ordem social e por conseqüência a segurança nacional. Para Hobbes, autor de leviatã, o Estado seria então um mal necessário, porém capacitado a assegurar um comportamento social mais pacífico dos membros da sociedade. Ele considerava o Estado um monstruoso aparato administrativo, que por meio de um Contrato Social com a população poderia absorver o direito de resolver por ela, soberanamente, as questões do bem comum. Portanto, para escapar ao caos e ter assegurada a sobrevivência, o homem perderia a liberdade política.
             Discordando da teoria do Contrato Social, uma outra corrente de pensadores acreditava que a legitimação jurídica da monarquia perpassava pelas questões religiosas. Eles viam nos reis a expressão mais perfeita da autoridade delegada por Deus, e por isso falavam em monarquia por direito divino o trecho a seguir é de autoria do renomado teórico absolutista francês, Jacques Bossuet (1627-1704).
             Também adepto da teoria do direito divino dos reis, Jean Bodin (1530-1596) tornou-se conhecido como "Procurador Geral do Diabo" devido a sua incansável perseguição a feiticeiras e hereges. Bodin negava veementemente o direito à existência do Parlamento, sustentando que o órgão legislativo, diante de Deus, não possuía soberania para resolver qualquer questão, principalmente se em desacordo com o rei.
             Os processos de formação e consolidação dos Estados nacionais, variáveis em cada pais, sugerem que a linguagem política das monarquias no Antigo Regime variou na mesma proporção. Sendo assim, não podemos unificar as características, a política e a mentalidade dos reis da modernidade. Para cada Estado nacional ou forma monárquica é necessário dirigir um olhar. Existiram na realidade vários "Antigos Regimes". Mas a expressão Ancien Régime está associada à Revolução Francesa, usada em referência crítica ao absolutismo monárquico. O próprio uso generalizado dessa expressão mostra que a França monárquica ofereceu o modelo mais elaborado da centralização absolutista do pode.
             A imagem do rei como pai e protetor complementava a imagem do soberano poderoso, promotor do desenvolvimento econômico, e ajudava com isso a minimizar os conflitos sociais sob o Antigo Regime.
             Pela ótica do simbolismo, do imaginário, dos sentimentos e dos mitos é interessante observar o significado das práticas e representações políticas do Antigo Regime, principalmente na França, desde os primórdios da centralização do poder político até o seu esplendor no século XVII.
             O imaginário político na Idade Média mostrou-se importante para que a sociedade, na Idade Moderna, compreendesse o verdadeiro significado do rei no processo de consolidação dos Estados nacionais. Para os medievos, o poder político era rodeado de simbologias inquestionáveis, baseadas no misticismo.
             Séculos depois, a sagração do poder real na França conservava seu caráter mágico. A cerimônia ficava a cargo da Igreja, o que permite perceber claramente a intermediação entre as esferas secular e espiritual durante o Antigo Regime. Em geral era realizada na Catedral de Reirris. Naquele momento, toda a sociedade podia participar da comunhão que se oficializava entre o Sagrado e a Nação.
             Outro exemplo de ritual político é o ‘’Leito de Justiça", uma das quatro maiores cerimônias que compunham o cerimonial do Estado francês, desde o final da Idade Média. Era uma espécie de "guerra de rituais" travada no Parlamento de Paris, na qual a realeza se utilizava de toda complexidade do código cerimonial como instrumento de ofuscação e rebaixamento dos parlamentares.
             A relação entre a realeza e seus súditos que esses rituais expressam corresponde a uma analogia orgânica, na qual a figura do rei representa a cabeça do reino, e os súditos, os membros. É possível afirmar nesse instante que há o declínio expressivo da ordem política cristã, uma vez que a imagem da realeza apropria-se de certas funções pontifícias, anteriormente praticadas pelos mais altos representantes da Igreja.
             A imagem do rei, no período da transição do feudalismo para a sociedade burguesa, se associa à justiça, à virtude e à própria natureza da nação. O rei é o agente responsável pela manutenção da ordem, pela prosperidade da nação, pelas vitórias nas guerras, pelos êxitos culturais. A realeza passa a ser um conceito místico. Concepções medievalistas que se utilizavam da metáfora do esposo e da esposa - o amor de Cristo pela Igreja - são transferidas do espiritual ao secular, para definir a ligação entre Príncipe e Estado. O rei é o "esposo mítico" da República, aqui entendida como Estado.
             Durante a modernidade, o corpo do rei foi visto simbolicamente como se na verdade fossem dois corpos distintos. O primeiro representando o corpo físico, sujeito a sentimentos, paixões e morte. O segundo, o corpo político, cujos membros representariam os súditos, e a cabeça, o rei. Nesse corpo o rei estaria imune às manifestações humanas, inclusive à morte. No final do século XVIII, a Revolução Francesa empreenderia a crítica radical dessa e de outras concepções do Antigo Regime.

Baixa Idade Média.


A partir do século XII, a sociedade viveria o auge do modelo feudal. Mas também assistiria ao inicio de sua desintegração. Este período marcado por amplas transformações nos aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais da vida européia é chamado de Baixa Idade Média.
            A sociedade na Baixa Idade Média permanecia dividida em três categorias. Na primeira situavam-se aqueles que faziam a intermediação entre os homens e Deus, missão especial e de grande estima para a época: o clero. Seguiam-se os que combatiam, encarregados da proteção dos feudos, dos fracos e das mulheres: a nobreza leiga. Enfim, encontravam-se na terceira categoria os servos, camponeses encarregados de produzir o sustento das camadas privilegiadas, ligados à terra), os viIões (trabalhadores sem vínculos e obrigações para com o senhor feudal) e os comerciantes.
            A base de sustentação das relações sociais era fornecida pela religião cristã, para a qual o Pai, Filho e Espírito Sto compõem uma divindade una. De maneira similar, a sociedade feudal via sua unidade a partir dos laços entre suas três categorias sociais. É o que mostram as palavras do bispo Adalberão, que viveu no século XI:
            Na verdade, a ''Casa de Deus" estava mais ampla, com novos aposentos, e mais bem cuidada. A começar pela Igreja Católica, a mais poderosa das instituições medievais, a única a cobrir toda o território e a obedecer a uma direção centralizada. Das fileiras dos religiosos, que sabiam ler e- escrever em latim, haviam saído os quadros administrativos a serviço dos reis e da alta nobreza. o mesmo tempo, os mosteiros haviam preservado, parte da herança cultural da Antiguidade Clássica e serviam de centros de ensino para os leigos. %a Baixa Idade Média, porém, a ligação entre a igreja e a cultura passou a ser afirmada não apenas nos mosteiros, mas também num novo tipo de instituição de ensino: a universidade. Ligados à Igreja em sua grande maioria, os professores dariam origem, no fim da Idade Média, a uma nova categoria social, a dos intelectuais. Coube a eles esboçar o que seria uma das tarefas mais árduas dos humanistas: desvincular a razão da fé.
            Os senhores feudais, por sua vez, desfrutavam na "Casa de Deus" uma vida cada vez mais confortável. Viviam nos castelos juntamente com a mulher, filhos legítimos e ilegítimos, parentes e agregados.
             Existem registros de mulheres que chegaram a exercer os direitos de um senhor feudal, geralmente quando viúvas e tutoras dos filhos menores. Nesse caso, tornavam-se responsáveis pela extensão de seus domínios. Mas o aspecto dominante era a sujeição da mulher, defendida igualmente pela igreja e pela aristocracia medievais. 0 casamento geralmente se realizava em função da conveniência masculina, quase não tendo relação com o amor. Enquanto para as moças de família nobre o valor estava no recato e na submissão, para os cavaleiros medievais a honra, a bravura e o heroísmo constituíam qualidades indispensáveis. Como as crianças, as mulheres eram consideradas incapazes por grande parte dos homens. Essa visão masculina com relação à mulher resultava do receio dos homens em face do adultério e de prováveis magias, que poderiam levá-los à impotência, fatores que transformavam, muitas vezes, o momento no leito conjugal numa "guerra dos sexos"
             Ocupantes dos mais humildes aposentos da "Casa de Deus", os servos e vilões eram vistos com desprezo pelas demais categorias sociais, ainda que estas reconhecessem o caráter imprescindível do seu trabalho. Os camponeses geravam a renda que sustentava a nobreza e o clero, e suas mulheres e filhas, além de desempenharem tarefas domésticas e no campo, podiam ser obrigadas a prestar serviços na casa do senhor. Mesmo assim, suas condições de vida eram bem melhores que as dos escravos da Antiguidade. 0 servo medieval tinha liberdade para casar, constituir família, ser proprietário de ferramentas de trabalho e utensílios pessoais. Por meio de posse útil da terra, podia produzir alimentos para o próprio sustento e, em alguns casos, podia deixar herdeiros. Não poucas vezes produzia fibras vegetais e animais que sua família tecia, fabricando roupa de cama, vestuário e sacaria.
             Embora a sociedade feudal costume ser associada a um período histórico marcado pelo retrocesso tecnológico, inovações técnicas importantes vieram tornar mais rentável e menos penoso o trabalho do campesinato medieval. Entre elas está à invenção da charrua uma espécie de arado mais eficiente, a reestruturação do moinho hidráulico e o desenvolvimento de novas formas de atrelar os animais, o que aumentou o poder de tração. Também foi difundida a prática da rotação de culturas segundo a qual parte da terra ficava em pousio, para que não se esgotassem os nutrientes do solo. As conseqüências dessas inovações formam significativas, acompanhando o crescimento demográfico e gerando excedentes para uma atividade comercial cada vez mais intensa.
             Embora a vida econômica da Idade Média baseasse principalmente na produção cola de subsistência, não faltaram, nesse período, habilidade técnica, economia de mercado e produção de excedentes. Isso quer dizer o sistema feudal não se mostrou incompatível com o comércio e a indústria. Ao contrário, desde os primórdios do período medieval, comerciantes e artesãos asseguraram, ainda que em bases precárias, a produção e a circulação de bens entre os domínios senhoriais. Essas pessoas habitavam os burgos, lugares fortificados que impulsionaram a retomada da vida urbana. 0 estilo de vida dos burgueses mostrava-se bem diferente daquele que ocorria dentro dos feudos, e suas atividades estariam entre os fatores responsáveis pela destruição do próprio sistema feudal.
             De início, os burgos surgiram em pontos estratégicos dos feudos e permaneceram sob controle dos nobres. Mas logo tiveram condições de comprar sua autonomia - e o desenvolvimento econômico foi acelerado no ritmo do desenvolvimento da vida urbana. Em meados do século XII, uma cidade como Paris, capital do reino da França, ainda continha espaços abertos que podiam ser utilizados para a produção de alimentos. Cem anos depois, antigos núcleos de origem romana haviam sido revitalizados, muitos burgos haviam se transformado em cidades importantes e as atividades de seus habitantes, os burgueses, ganhavam um espaço físico, econômico e social cada vez maior.
             As indústrias manufatureiras (indústria aqui entendida como um conjunto das atividades que participam da fabricação de produtos manufaturados a partir de matérias-primas) se expandiram nesse período em resposta às necessidades de vestuário, moradia e às exigências das constantes guerras. O crescimento populacional também incentivou a procura de maior conforto entre as classes mais ricas, bem como a construção e a reformadas igrejas, que aumentaram consideravelmente após o século XI. As doações dos burgueses para as obras religiosas foram feitas, muitas vezes, em troca de recompensa espiritual. Eles também pretendiam, com isso, neutralizar a oposição do clero católico às suas atividades: além de se dedicar ao comércio, os burgueses também emprestavam dinheiro a juros, contrariando as normas da Igreja Católica que proibiam a usura. As generosas doações não impediram, porém, que a Igreja medieval visse com suspeita os comerciantes e perseguisse ativamente os não-cristãos, isto é, os judeus.
             A partir de meados do século XIII, com o aparecimento de banqueiros, cambistas e usurários das mais variadas origens, ocorreu uma expansão de crédito, o que veio favorecer as atividades comercial e industrial, nitidamente urbanas. Desenvolveram-se também o comércio marítimo e o terrestre, realizados a curta ou longa distância. 0 comércio marítimo de cabotagem ou navegação costeira pode ser caracterizado como de curta distância, pois, na época, os oceanos permaneciam praticamente desconhecidos dos navegadores. 0 comércio terrestre se realizava ora em mercados locais (comércio de curta distância) ora em feiras periódicas ou fixas, as quais atraíam caravanas de mercadores de toda a Europa. Os caminhos também passaram a ser trilhados por pessoas de todas as origens, que buscavam a salvação através de peregrinações aos grandes centros religiosos do período medieval: Roma, na península Itálica, e Santiago de Compostela, no norte da Espanha.
             O mundo do trabalho também assistiu a transformações importantes durante a Baixa Idade Média. Nos domínios dos senhores, foram abolidas algumas obrigações servis e os camponeses, principalmente após o século XII, passaram a exigir pagamento em dinheiro ou em parte do excedente agrícola. Alguns deles conseguiram obter rendas vendendo seus excedentes nos mercados locais, enquanto outros abandonaram as lavouras e se especializaram na produção industrial e no comércio.
             Nos burgos, desenvolveram-se as corporações de ofício. Responsáveis pela organização e distribuição de determinados produtos industrializados, essas associações típicas da sociedade medieval reuniam profissionais do mesmo ramo, desde os mestres de perícia reconhecida até os aprendizes.
             Entre as atribuições das corporações de ofício estava a de evitar a concorrência entre os artesãos locais e os de outras cidades. Para tal, fixavam o preço do produto, controlavam a qualidade das mercadorias, a quantidade de matérias-primas necessárias à indústria e os salários dos produtores.
             Todas essas mudanças provocadas pelo incremento comercial, industrial e urbano provocam o confronto entre as visões de mundo dos senhores feudais, por um lado, e dos comerciantes e artesãos, por outro lado. A questão da riqueza talvez tenha sido um dos maiores pontos de controvérsia. A riqueza, para um senhor feudal, apesar de não estar unicamente relacionada à terra, se associava ao número de seus vassalos diretos, só é, dependentes e agregados que viviam dentro de suas propriedades. já para a burguesia, riqueza significava poupança e investimentos adquiridos com a administração de seus bens. Para os nobres, tudo isso era sinônimo de avareza.
             As cruzadas consistiram em expedições guerreiras estimuladas pelo papado com vistas à conquista da Terra Santa, isto é, dos lugares da Palestina nos quais Jesus viveu e que há séculos estavam sob o domínio muçulmano. Foram convocadas no século XI pelo papa Urbano lI, em nome de um projeto de união da Cristandade contra os "infiéis", detentores dos Lugares Santos e em ofensiva contra os povos cristãos do Oriente. Os que delas participavam eram chamados de cruzados; receberam da Igreja de Roma uma indulgência especifica, ou seja, o perdão de seus pecados caso partissem para a Terra Santa. Apesar de inferiorizados numericamente, os participantes da Primeira Cruzada (1096) conseguiram paralisar a pressão muçulmana sobre os territórios bizantinos e conquistar Jerusalém e outros trechos da Síria e da Palestina, nos quais estabeleceram Estados feudais, os chamados reinos francos ou latinos.
             Mas o êxito dos europeus teria curta duração. Sob a liderança do sultão Saladino, os muçulmanos derrotaram os cruzados em 1187 e reconquistaram Jerusalém. Os reinos latinos ficaram reduzidos a alguns trechos litorâneos da Palestina e da Síria. Outras expedições dos cruzados - consideraram mais lucrativo saquear os domínios bizantinos, em vez de se deslocarem até a Terra Santa para enfrentar os muçulmanos.
             As cruzadas exerceram forte influência na evolução da civilização européia. Essas empresas militares favoreceram o enriquecimento dos comerciantes que, aproveitando-se das viagens, foram criando novas oportunidades de comércio. Por outro lado, a crescente necessidade de transportar os peregrinos propiciara novos investimentos na conspiração naval e na indústria de bens de consumo. Não se pode, entretanto, exagerar a importância dessas expedições. Segundo o historiador Hilário Franco Júnior.
             Uma das conseqüências das cruzadas foi o contato entre os cruzados e outras civilizações como os bizantinos e os muçulmanos. Obras de ciência e filosofia greco-romana, desaparecidas na Europa ocidental, voltaram a se tornar conhecidas a partir de sua tradução para o árabe. E a influência cultural árabe se estendeu a muitos outros campos, das táticas de combate à culinária, com a introdução das especiarias e outros temperos orientais.
             Outro aspecto resultante dessas expedições foi o fortalecimento político e econômico da Igreja de Roma, impulsionadora das cruzadas' à custa da Igreja de Constantinopla, associada ao debilitado Império Bizantino.
No decorrer dos séculos XIV e XV, a economia da Europa ocidental passou por uma violenta depressão, após um longo período de prosperidade. Ao mesmo tempo, os europeus começaram a ver o mundo de um modo diferente, questionando a ordem feudal. Associada à crise de retração econômica, a mudança de mentalidade contribuiu para profundas modificações políticas, econômicas, sociais e culturais, que acabaram resultando no colapso de muitas das estruturas do sistema em vigor.
             Entre as causas da retração, podemos citar de início os efeitos da Peste Negra, introduzida na Europa por volta de 1348. Provavelmente de origem oriental, a peste foi responsável pela morte de milhares de pessoas. Acredita-se que um quarto da população européia tenha sido dizimada, provocando desorganização a produção e, com isso, a fome generalizada.
             A concentração urbana e a falta de higiene foram agentes facilitadores na propagação da epidemia. Grande quantidade de lixo ficava espalhada pelas cidades medievais e o esgoto corria pelas ruas, contribuindo para a disseminação da doença.
             As secas, a diminuição da produção agrícola (devido à morte e à fuga dos camponeses para as cidades) e a fome agravaram ainda mais a situação. A escassez de mão-de-obra nos campos levou os senhores a tomar medidas restritivas no sentido de dificultar, cada vez mais, a saída dos servos dos feudos. Iniciou-se um processo de endurecimento nas relações entre senhores e camponeses em diversas regiões da Europa.
             A plebe rebelou-se contra a ordem feudal em levantes como as dos jornaleiros em Flandres (1323-1328) e as revoltas camponesas (também conhecidas como jacqueries, em referência às rebeliões do campesinato francês). Tais movimentos ameaçaram a própria sobrevivência da nobreza e do clero. Foram reprimidos com extrema ferocidade.
Enquanto as revoltas camponesas sucediam-se apesar da repressão, nas cidades cresciam as diferenças entre os ricos mercadores e os mestres das corporações, que tentavam limitar o crescimento comercial, controlando desde a etapa da produção das mercadorias até o preço final do produto. Outro fator ligado à crise localizou-se no comércio internacional. Os produtos orientais difundidos pelas cruzadas alcançavam altos preços, em boa parte devido à existência de grande número de intermediários entre o Oriente e as praças de comércio no Ocidente.
             A crise generalizada obrigou as várias categorias sociais a buscar uma resposta. A dos oprimidos do campo e da cidade foram as jacqueries. A da nobreza foram os conflitos dinásticos como a Guerra dos Cem Anos, por exemplo, quando em 1340, ingleses e franceses iniciaram um longo período de confronto alternado por tempos de combates e de tréguas em meio a rebeliões camponesas e à mortandade causada pela peste.
             Outra resposta, apoiada pela burguesia comercial, se baseava no fortalecimento do poder dos reis para restabelecer a ordem e a abertura de novos mercados. Para algumas nações, isso implicava uma política de expansão marítima. Esse projeto atraiu muita gente das cidades que não pertencia às fileiras dos burgueses ricos, aventureiros que sonhavam em conhecer novas terras, ver de perto as maravilhas descritas por Marco Polo e outros viajantes e, ao mesmo tempo, fazer fortuna nessas regiões exóticas. Todos os sonhos pareciam possíveis, na mesma medida em que a natureza e a sociedade já não pareciam tão sem surpresas, tão definidas e imutáveis. Os novos atores, movidos pela curiosidade e pela conjuntura, fervilhando de descobertas e possibilidades, não conseguiam - e nem tentaram - evitar os choques com a velha ordem nobiliárquica e eclesiástica.
             Os presságios de uma nova ordem estavam a caminho. Em breve a "Europa do latim" deixaria de existir.