A
expressão ''Idade das Trevas" surgiu na era moderna para designar mais de
mil anos da vida européia, desde a decadência e a fragmentação do Império
Romano até o Renascimento. Era como se as luzes da Antiguidade Clássica fossem
apagadas, para ser acesas muitos séculos depois pelos autoproclamados herdeiros
da cultura greco-romana.
Mas não foi bem assim. Mesmo no
período das migrações germânicas, as trevas jamais chegaram a reinar absolutas.
Desde o século VI, os mosteiros ajudaram a preservar textos de autores pagãos e
dos primeiros pensadores da cristandade. Dois séculos mais tarde, muitos
eruditos cristãos trocaram os mosteiros pela corte de Carlos Magno. Ali
desenvolveram uma atividade cultural intensa, que deu ao período a designação
de "Renascimento Carolíngio". Também a partir do século VIII, o
domínio mouro na península Ibérica ajudou a difundir na Europa ocidental textos
de autores greco-romanos traduzidos para o árabe. 0 intercâmbio entre eruditos
muçulmanos e cristãos aumentou nos séculos XI e XII, com as Cruzadas. E a
criação das primeiras universidades, no final da idade Média, a riu novos
espaços para a difusão do conhecimento.
A curiosidade intelectual ia além
dos círculos eruditos. Pesquisas históricas recentes examinam as transformações
do mundo feudal no tocante ao universo simbólico da sociedade, principalmente
dos mercadores. 0 exemplo fora dado por um mercador medieval veneziano chamado
Marco Pólo, que percorrera o Oriente e contara suas experiências no Livro das
Maravilhas.
Segundo o historiador Jacques Le
Goff, essas pesquisas apontam para uma nova problemática: a questão da
universalidade. 0 homem tinha interesse em captar o universo e descobrir o lado
oculto de seu cotidiano e mentalidade. Coube aos humanistas, como foram
chamados os homens ligados à renovação da filosofia, da ciência e da literatura
na modem idade, enfatizar a complexidade das transformações ocorridas na Europa
ocidental a partir do século XII. Com isso, tornaram o movimento renascentista
não um movimento isolado, mas um dos elos de uma vasta cadeia que assinalou a
transição da Idade Média para a Idade Moderna.
As influências da era medieval ainda
eram significativas sobre o pensamento do homem quando este abriu as portas do
mundo moderno a partir de exigências políticas, sociais e econômicas
emergentes.
A Idade Média fora um período de
extrema religiosidade, no qual Deus estava no centro das preocupações. Assim,
as influências medievais se mostraram especialmente fortes no terreno
religioso. Muitos humanistas se viam como bons cristãos, servos obedientes da
Igreja de Roma ou das igrejas reformadas, após a ruptura conduzida pelo alemão
Martinho Lutero no início do século XVI. Mas também reivindicavam o direito de
pensar de maneira crítica e de manifestar suas idéias livremente, isto é, sem a
passividade que se esperava dos homens diante das estruturas religiosas e
sociais do período feudal, declaradas imutáveis e sagradas. Os humanistas
queriam examinar criticamente o mundo das idéias, o mundo da natureza, as
relações entre os homens, e a partir desse exame agir sobre o seu próprio
destino. A Fortuna podia ser contra atacada através de artifícios engenhosos.
Esse mito significa que o homem
renascentista deveria ser dotado de Virtú, expressão definida pelo florentino
Nicolau Maquiavel, um pensador da época, como um homem obstinado por liberdade.
Seu desejo possibilitaria que ele manipulasse o seu destino, que agora não mais
se encontrava nas mãos de Deus, mas em suas próprias mãos. Isso significa que o
humanismo e o renascimento foram produtos das expectativas e das aspirações de
homens ávidos por uma nova ordem e se expressaram mediante um processo de
secularização. O homem passou a se ver como a medida de todas as coisas e se
propôs, a partir de sua própria consciência, a construir um novo tempo.
O renascimento cultural teve sua
origem nas mudanças políticas, econômicas e sociais ocorridas a partir da Baixa
Idade Média. Foram transformações dos padrões de comportamento, das crenças,
das instituições, dos valores espirituais e materiais transmitidos
coletivamente e que atingiram uma rica e poderosa classe superior, a alta
burguesia e a nobreza, excluindo os demais segmentos da sociedade. Portanto,
tratou-se de um movimento elitista.
Mas o período medieval não terminou
subitamente em dado ponto nem a sociedade moderna veio à vida em um outro.
Alterações na mentalidade do homem, bem como no gosto, na arte, na filosofia,
na teologia, na economia e na política fizeram parte de um processo lento que
se iniciou basicamente no século XII e se estendeu a todos os setores.
Assim, a antiga ordem social
concebida como uma organização natural e relativamente com pouca competição
cedeu lugar a uma nova mentalidade em que se permitia a valorização do privado,
representado pelos bens materiais, pela propriedade particular e pelo direito à
liberdade.
Ao
mesmo tempo, porém, as pessoas pareciam ter perdido algo: a segurança do
trabalho, da moradia e o senso de relacionamento que lhes oferecia a estrutura
social medieval. Eram mais livres, mas também mais sozinhos.
Vantagens comerciais decorrentes da
posição geográfica, a existência de um grande número de unidades políticas
independentes e o desenvolvimento manufatureiro fizeram do norte da península
Itálica a precursora do movimento renascentista. Soma-se a isso a presença de
uma tradição clássica muito forte, pois a região foi o centro do Império Romano
e além disso sofreu a influência dos bizantinos que se fixaram na península
para escapar aos ataques dos turcos contra Constantinopla. Outro fator
importante foi o papel desempenhado pelos mecenas: papas, cardeais, príncipes
ou ricos mercadores que, movidos pela ambição, pela busca de popularidade e
poder, passaram a contratar os serviços dos artistas e se tornaram os grandes
incentivadores da cultura italiana.
Os mecenas souberam escolher: alguns
de seus protegidos realizaram obras que desafiam os séculos, vendo o homem como
parte da natureza e buscando proporções naturais entre as formas humanas e o
meio circundante. Em suas pesquisas, Leonardo da Vinci evidenciou sua
preocupação com a anatomia humana e a necessidade de conceber as imagens por
meio do rigor matemático. Michelangelo, pintor e escultor, criou obras primas a
partir de temas religiosos, emprestando a beleza e a força da herança
greco-romana a personagens bíblicos.
A partir do século XV a cultura
renascentista saiu da Itália e se espalhou por outros países, apresentando
características tais como: classicismo, hedonismo, naturalismo,
antropocentrismo e racionalismo.
O classicismo pode ser explicado a
partir da retomada dos valores da Antiguidade, correntes de pensamento,
doutrinas políticas, concepções filosóficas e históricas pelos renascentistas.
Representou uma espécie de "depósito de pensamentos" sujeito a
transformações, isto é, de acordo com as necessidades ou desejos da época.
Um exemplo dessa transformação foi à
passagem da "civilização terrestre" medieval para uma
"civilização marítima". 0 mar é um elemento-chave em Os lusíadas, a
epopéia de Camões, uma das expressões supremas do Renascimento em Portugal,
enquanto na obra A Divina Comédia, de Dante, eram a Terra e os céus os
elementos fundamentais.
O hedonismo renascentista, por sua
vez, valorizou o corpo, os prazeres terrenos e espirituais, o culto do belo e
da perfeição. 0 naturalismo estimulou o domínio do homem sobre a natureza e
levou à substituição das explicações sobrenaturais ou transcendentais pelas
racionais.
Finalmente, em vez do teocentrismo
medieval, o antropocentrismo renascentista reservou o centro do universo ao
homem. Este passou a desenvolver sua capacidade de descobrir verdades por conta
própria e de crescer, material e espiritualmente, a fim de deixar sua marca no
mundo. 0 homem passou a construir as coisas à sua imagem e semelhança, escolheu
seu próprio passado e teve a capacidade de deixar um testemunho da sua
existência a partir da sua excelência e imortalidade.
Em certa medida, porém, essa atitude
implicou em conflito com as concepções religiosas e até mesmo em
irreligiosidade ou ateísmo. Em outras palavras, os pensadores renascentistas
questionaram não só o conservadorismo da Igreja, mas também formularam novos
princípios que irão desembocar nos movimentos religiosos reformadores, entre os
quais a ruptura impulsionada por Martinho Lutero.
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