sábado, 5 de maio de 2012

Renascimento Cultural


A expressão ''Idade das Trevas" surgiu na era moderna para designar mais de mil anos da vida européia, desde a decadência e a fragmentação do Império Romano até o Renascimento. Era como se as luzes da Antiguidade Clássica fossem apagadas, para ser acesas muitos séculos depois pelos autoproclamados herdeiros da cultura greco-romana.
            Mas não foi bem assim. Mesmo no período das migrações germânicas, as trevas jamais chegaram a reinar absolutas. Desde o século VI, os mosteiros ajudaram a preservar textos de autores pagãos e dos primeiros pensadores da cristandade. Dois séculos mais tarde, muitos eruditos cristãos trocaram os mosteiros pela corte de Carlos Magno. Ali desenvolveram uma atividade cultural intensa, que deu ao período a designação de "Renascimento Carolíngio". Também a partir do século VIII, o domínio mouro na península Ibérica ajudou a difundir na Europa ocidental textos de autores greco-romanos traduzidos para o árabe. 0 intercâmbio entre eruditos muçulmanos e cristãos aumentou nos séculos XI e XII, com as Cruzadas. E a criação das primeiras universidades, no final da idade Média, a riu novos espaços para a difusão do conhecimento.
            A curiosidade intelectual ia além dos círculos eruditos. Pesquisas históricas recentes examinam as transformações do mundo feudal no tocante ao universo simbólico da sociedade, principalmente dos mercadores. 0 exemplo fora dado por um mercador medieval veneziano chamado Marco Pólo, que percorrera o Oriente e contara suas experiências no Livro das Maravilhas.
            Segundo o historiador Jacques Le Goff, essas pesquisas apontam para uma nova problemática: a questão da universalidade. 0 homem tinha interesse em captar o universo e descobrir o lado oculto de seu cotidiano e mentalidade. Coube aos humanistas, como foram chamados os homens ligados à renovação da filosofia, da ciência e da literatura na modem idade, enfatizar a complexidade das transformações ocorridas na Europa ocidental a partir do século XII. Com isso, tornaram o movimento renascentista não um movimento isolado, mas um dos elos de uma vasta cadeia que assinalou a transição da Idade Média para a Idade Moderna.
            As influências da era medieval ainda eram significativas sobre o pensamento do homem quando este abriu as portas do mundo moderno a partir de exigências políticas, sociais e econômicas emergentes.
            A Idade Média fora um período de extrema religiosidade, no qual Deus estava no centro das preocupações. Assim, as influências medievais se mostraram especialmente fortes no terreno religioso. Muitos humanistas se viam como bons cristãos, servos obedientes da Igreja de Roma ou das igrejas reformadas, após a ruptura conduzida pelo alemão Martinho Lutero no início do século XVI. Mas também reivindicavam o direito de pensar de maneira crítica e de manifestar suas idéias livremente, isto é, sem a passividade que se esperava dos homens diante das estruturas religiosas e sociais do período feudal, declaradas imutáveis e sagradas. Os humanistas queriam examinar criticamente o mundo das idéias, o mundo da natureza, as relações entre os homens, e a partir desse exame agir sobre o seu próprio destino. A Fortuna podia ser contra atacada através de artifícios engenhosos.
            Esse mito significa que o homem renascentista deveria ser dotado de Virtú, expressão definida pelo florentino Nicolau Maquiavel, um pensador da época, como um homem obstinado por liberdade. Seu desejo possibilitaria que ele manipulasse o seu destino, que agora não mais se encontrava nas mãos de Deus, mas em suas próprias mãos. Isso significa que o humanismo e o renascimento foram produtos das expectativas e das aspirações de homens ávidos por uma nova ordem e se expressaram mediante um processo de secularização. O homem passou a se ver como a medida de todas as coisas e se propôs, a partir de sua própria consciência, a construir um novo tempo.
            O renascimento cultural teve sua origem nas mudanças políticas, econômicas e sociais ocorridas a partir da Baixa Idade Média. Foram transformações dos padrões de comportamento, das crenças, das instituições, dos valores espirituais e materiais transmitidos coletivamente e que atingiram uma rica e poderosa classe superior, a alta burguesia e a nobreza, excluindo os demais segmentos da sociedade. Portanto, tratou-se de um movimento elitista.
            Mas o período medieval não terminou subitamente em dado ponto nem a sociedade moderna veio à vida em um outro. Alterações na mentalidade do homem, bem como no gosto, na arte, na filosofia, na teologia, na economia e na política fizeram parte de um processo lento que se iniciou basicamente no século XII e se estendeu a todos os setores.
            Assim, a antiga ordem social concebida como uma organização natural e relativamente com pouca competição cedeu lugar a uma nova mentalidade em que se permitia a valorização do privado, representado pelos bens materiais, pela propriedade particular e pelo direito à liberdade.
Ao mesmo tempo, porém, as pessoas pareciam ter perdido algo: a segurança do trabalho, da moradia e o senso de relacionamento que lhes oferecia a estrutura social medieval. Eram mais livres, mas também mais sozinhos.
            Vantagens comerciais decorrentes da posição geográfica, a existência de um grande número de unidades políticas independentes e o desenvolvimento manufatureiro fizeram do norte da península Itálica a precursora do movimento renascentista. Soma-se a isso a presença de uma tradição clássica muito forte, pois a região foi o centro do Império Romano e além disso sofreu a influência dos bizantinos que se fixaram na península para escapar aos ataques dos turcos contra Constantinopla. Outro fator importante foi o papel desempenhado pelos mecenas: papas, cardeais, príncipes ou ricos mercadores que, movidos pela ambição, pela busca de popularidade e poder, passaram a contratar os serviços dos artistas e se tornaram os grandes incentivadores da cultura italiana.
            Os mecenas souberam escolher: alguns de seus protegidos realizaram obras que desafiam os séculos, vendo o homem como parte da natureza e buscando proporções naturais entre as formas humanas e o meio circundante. Em suas pesquisas, Leonardo da Vinci evidenciou sua preocupação com a anatomia humana e a necessidade de conceber as imagens por meio do rigor matemático. Michelangelo, pintor e escultor, criou obras primas a partir de temas religiosos, emprestando a beleza e a força da herança greco-romana a personagens bíblicos.
            A partir do século XV a cultura renascentista saiu da Itália e se espalhou por outros países, apresentando características tais como: classicismo, hedonismo, naturalismo, antropocentrismo e racionalismo.
            O classicismo pode ser explicado a partir da retomada dos valores da Antiguidade, correntes de pensamento, doutrinas políticas, concepções filosóficas e históricas pelos renascentistas. Representou uma espécie de "depósito de pensamentos" sujeito a transformações, isto é, de acordo com as necessidades ou desejos da época.
            Um exemplo dessa transformação foi à passagem da "civilização terrestre" medieval para uma "civilização marítima". 0 mar é um elemento-chave em Os lusíadas, a epopéia de Camões, uma das expressões supremas do Renascimento em Portugal, enquanto na obra A Divina Comédia, de Dante, eram a Terra e os céus os elementos fundamentais.
            O hedonismo renascentista, por sua vez, valorizou o corpo, os prazeres terrenos e espirituais, o culto do belo e da perfeição. 0 naturalismo estimulou o domínio do homem sobre a natureza e levou à substituição das explicações sobrenaturais ou transcendentais pelas racionais.
            Finalmente, em vez do teocentrismo medieval, o antropocentrismo renascentista reservou o centro do universo ao homem. Este passou a desenvolver sua capacidade de descobrir verdades por conta própria e de crescer, material e espiritualmente, a fim de deixar sua marca no mundo. 0 homem passou a construir as coisas à sua imagem e semelhança, escolheu seu próprio passado e teve a capacidade de deixar um testemunho da sua existência a partir da sua excelência e imortalidade.
            Em certa medida, porém, essa atitude implicou em conflito com as concepções religiosas e até mesmo em irreligiosidade ou ateísmo. Em outras palavras, os pensadores renascentistas questionaram não só o conservadorismo da Igreja, mas também formularam novos princípios que irão desembocar nos movimentos religiosos reformadores, entre os quais a ruptura impulsionada por Martinho Lutero.

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